Quem sou eu

Minha foto
Jaguariúna, SP, Brazil
Advogado e contabilista em Jaguariúna, SP. Sócio convidado da ACRIMESP - Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de São Paulo, desde 11 de agosto de 1997, título de cidadão jaguariunense pelo Decreto Legislativo 121/1997 e membro titular do CONPHAAJ - Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico de Jaguariúna, nos biênios 2011 a 2012 e 2017 a 2018,

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Lei Seca: erro do legislador garante impunidade

Luiz Flávio Gomes - 19/10/2010

O sujeito embriagado é surpreendido na direção do seu veículo. Ele é obrigado a soprar o bafômetro (etilômetro)? Ele é obrigado a ceder sangue para análise? 

A lei seca (Lei 11.705/08), dando nova redação ao artigo 306 do Código de Trânsito brasileiro — que cuida da embriaguez ao volante, ou seja, dirigir embriagado—, passou a exigir uma taxa de alcoolemia objetiva (0,6 decigramas de álcool por litro de sangue). Ocorre que nenhum motorista pode ser obrigado a soprar bafômetro ou submeter-se a exame de sangue para apurar dosagem alcoólica. Ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, por força do princípio da não autoincriminação).

A prova técnica, no entanto, indicando com precisão a concentração sanguínea de álcool, é absolutamente indispensável para a incidência do crime por dirigir embriagado. A lei exige a comprovação do 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue. Sem a comprovação desse requisito legal não existe o crime. Olha o problema: a prova técnica é indispensável, mas o motorista não é obrigado a fazer essa prova técnica (porque ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo). Veja o impasse que o legislador criou! Veja o erro da lei!

No habeas corpus (HC 166.377-SP), de relatoria do ministro Og Fernandes (j. 10/6/10), ficou reconhecida, uma vez mais, a inabilidade do legislador, que muitas vezes “vende” para a população o endurecimento da lei penal, mas acaba estabelecendo benefícios aos violadores da lei. A técnica legislativa nem sempre é acertada. O legislador atira no que vê e acerta o que não vê. Isso é comum. Quer mais rigor penal e acaba fazendo um texto que assegura a impunidade.
O desencontro entre o que ele pretende — mais rigor penal — e o que ele efetivamente escreve é mais do que patente. E é claro que o juiz, o Judiciário, não pode fazer malabarismos em cima do texto legal para salvar o objetivo punitivista (moralizador, repressivo) do legislador.  

A impunidade está garantida. Por erro do juiz? Não, por erro do legislador que, no afã de punir tudo e todos, parte de uma concepção autoritária do direito, esquecendo-se que o processo penal conta com regras constitucionais, legais e internacionais que protegem os direitos dos acusados. 

Antes da reforma legislativa promovida pela lei seca, o CTB (no seu artigo 306) não falava em nenhuma taxa de alcoolemia. Com a nova redação, a dosagem etílica passou a ser exigida expressamente pela lei. Isto é, passou a integrar o tipo penal, em linguagem técnica. 

Agora, só se configura o delito em apreço (direção embriagada) com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue, que não pode ser presumida ou medida de forma indireta, como por prova testemunhal ou exame de corpo de delito indireto ou supletivo. A lei exige prova técnica direta e objetiva. É preciso comprovar tecnicamente a taxa de álcool no sangue.

“Aparentemente benfazeja  [benéfica], essa modificação legislativa trouxe consigo enorme repercussão nacional, dando a impressão de que a violência no trânsito, decorrente da combinação bebida e direção, estaria definitivamente com os dias contados”, observou o ministro Og Fernandes no referido habeas corpus. “Entretanto, com forte carga moral e emocional, com a infusão na sociedade de uma falsa sensação de segurança, a norma de natureza até simbólica, surgiu recheada de dúvidas.”

Esse é um problema relativamente comum na legislação penal brasileira: “vende-se”a lei penal (“dura”) como “solução” para o problema da insegurança, mas isso é puramente “simbólico”, porque, na realidade, a lei muitas vezes é (equivocadamente) feita de forma a garantir a impunidade (não a repressão). A lei brasileira, às vezes, vende gato por lebre!
De acordo com a decisão do STJ (no HC 166.377-SP), a ausência da comprovação por meios técnicos impossibilita precisar a dosagem de álcool e inviabiliza a adequação típica do fato ao delito, o que se traduz na impossibilidade da persecução penal; ou seja: na impunidade. 

“Procurou o legislador inserir critérios objetivos para caracterizar a embriaguez – daí a conclusão de que a reforma pretendeu ser mais rigorosa”, observou o ministro Og Fernandes na decisão. “Todavia, inadvertidamente, criou situação mais benéfica para aqueles que não se submetessem aos exames específicos”, completa. 

QUEM É LUIZ FLÁVIO GOMES?
Luiz Flávio Gomes é mestre em direito penal pela USP e doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madrid. Foi promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983 e juiz de direito em São Paulo de 1983 a 1998. É professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa Maria (Arequipa, Peru) e professor de vários cursos de pós-graduação, dentre eles o da Facultad de Derecho de la Universidad Austral (Buenos Aires, Argentina) e o da Unisul (SC). É consultor do Iceps (International Center of Economic Penal Studies), em New York, e membro da Association Internationale de Droit Penal (Pau-França). É diretor-presidente da Rede LFG (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes), que promove cursos telepresenciais com transmissão ao vivo e em tempo real para todo país. É autor de vários livros (clique aqui para ver a lista completa), entre eles: Responsabilidade Penal da Pessoa JurídicaPenas e Medidas Alternativas à Prisão e Presunção de Violência nos Crimes Sexuais.

FONTE: ÚLTIMA INSTÂNCIA.

Nenhum comentário: